Um recorte jornalístico
06 de agosto de 1945 foi dia em que as cidades de Hiroshima e Nagasaki foram arrasadas por bombas nucleares. Há uma semana era lançado o filme de Christopher Nolan, “Oppenheimer”, que tratou de um dos principais inventores daquelas mesmas bombas nucleares. Com essa deixa, trazemos um texto sobre “Oppenheimer”, martinis e algumas paranoias americanas.
A ERA DA LOUCURA:
Muitos acham que a Era Atômica, também chamada de Era Nuclear, começou com o famoso Projeto Manhattan, de onde surgiram as bombas atômicas “Little Boy” e “Fat Man”, lançadas pelos Estados Unidos sobre as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki, em agosto 1945. Mas a verdade é que a Era Atômica se iniciou na madrugada de 16 de julho daquele ano, quando o Projeto Trinity fez o lançamento da bomba teste “Gadget” sobre as areias do deserto de White Sands, no Novo México [1].
Quem viu a explosão, ao vivo e a cores, descreveu-a como uma onda de luz e de som assustadoras, seguida de uma grande nuvem em formato de cogumelo multicolorida de quase 12.000 mil metros de altura [2]. Para que você tenha uma ideia, o Cristo Redentor tem 38 metros de altura, então estamos falando aqui de uma coluna de uma fumaça letal equivalente de 315 Cristos Redentores empilhados.
E sabe quem era o diretor do laboratório do Projeto Trinity? J. Robert Oppenheimer [3].
Recentemente, Oppenheimer virou o “assunto do momento” por conta do filme de Nolan, lançado no final de julho de 2023. O filme retrata o papel decisivo do cientista na criação das bombas atômicas lançadas contra o Japão no fim da Segunda Guerra Mundial, e tem despertado a curiosidade de muita gente sobre o assunto.
O que me faz lembrar de um vídeo muito antigo de uma declaração de Oppenheimer, que teria sido concedida logo após a explosão da bomba teste Gadget [4]. No vídeo, o cientista diz o seguinte: “Nós sabíamos que o Mundo não seria mais o mesmo. Alguns riram, alguns choravam, mas muitos ficaram em silêncio. Eu lembrei das linhas da escritura hindu ‘Bhagavad-Gita’: Vishnu estava tentando convencer o príncipe de que ele deveria cumprir com o seu dever, e para impressioná-lo, ele assume sua forma de multibraços e disse: – agora tornei-me a morte, a destruidora dos mundos”.
Ao dizer essas palavras, fica a impressão de que Oppenheimer está tomado de curiosidade e pavor pelo potencial atômico da nova bomba, deixando claro em seu olhar, quase estático, a loucura que a Era Atômica anunciava.
O assunto é tenso e envolve grandes conflitos éticos na ciência e nas políticas de guerra. Enquanto tudo isso ocorria, a sociedade americana absorvia os impactos de seu tempo, refletidos na forma como que as pessoas comiam e bebiam. E é aqui que os martinis entram na história, especialmente, o Dry Martini.
OS BEBEDORES E A GUERRA:
Muitas vezes só comemos e bebemos sem nos darmos conta do que está diante de nós na taça ou no prato. Pior que isso, é deixamos de perceber como os hábitos alimentares refletem a cultura e a sociedade de uma época. Comer e beber é História o tempo todo.
Por exemplo, podemos pensar no boom dos enlatados e embutidos [4] e das mais de cinco milhões de garrafas de Coca-Cola, consumidos pelos combatentes durante a Segunda Guerra Mundial[5]. O consumo destes tipos de alimentos foi estimulado, não só pela máquina da propaganda americana, mas principalmente por um contexto de escassez e a imprevisibilidade. Está vendo, tudo é História.
Com o álcool não foi diferente. Ao mesmo tempo em que a guerra prejudicou o comércio e produção de certos insumos para a fabricação de bebidas alcoólicas, também estimulou o seu elevado consumo, fazendo do álcool uma válvula de escape para muitas pessoas.
No livro “Shooting Up: A Short History of Drugs and War”, de Lukasz Kamieńsk, o pesquisador trata do abuso de drogas durante períodos de guerra. Diz que, da Segunda Guerra Mundial em diante, o consumo de bebidas alcoólicas disparou, e as porções de álcool dadas aos combatentes eram chamadas de “coragem líquida”. O livro traz uma série de histórias chocantes de soldados americanos que, em certo ponto, matavam e morriam por doses de vodka, whisky e cerveja. Mas é claro que tudo isso, além de normalizado, era mascarado, senão romantizado pela propaganda da Guerra [6].
Evidentemente, o abuso no consumo de álcool não ficou restrito aos campos de batalha. Os civis, com destaque aos americanos, também bebiam muito.
Sobreviventes da Era de Proibição (1920-1930) e de uma das mais brutais crises econômicas da História – a Grande Depressão de 1929 – os americanos já estavam novamente mergulhados em contexto de guerra e paranoia que, na verdade, nunca acabou. Basta considerarmos o entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial, em 1941, a Guerra Fria contra a União Soviética de 1942 até meados de 1990, e os conflitos e guerrilhas regionais espalhados na Ásia e no Oriente Médio, que duram até hoje. Esse frenesi sempre esteve imerso no elevado consumo de álcool, com destaque aos coquetéis.
Em contrapartida, a indústria cinematográfica americana tratou de pintar de romantismo e glamour o mal-estar geral, estimulando os bebedores e suavizando questões básicas de saúde pública, como as altas doses de álcool consumidas, por exemplo, em martinis.
Um fato muito claro desse assunto está nas personagens “Nick e Nora”: um casal de detetives que protagonizou uma série de filmes, entre 1934 e 1947, e radionovelas até meados de 1950. Não raramente, Nick e Nora estavam rodeados de álcool e encenavam o consumo de doses e mais doses de martinis, sendo as cenas mais famosas as da comédia “The Thin Man” de 1934 [8]:
OPPENHEIMER E MARTINIS DESÉRTICOS:
O Dry Martini, historicamente chamado apenas de “martini”, é um coquetel tão emblemático que ele, não só “rouba” o brilho de toda uma família de coquetéis martinos, mas também é considerado umas das “heranças culturais” da sociedade norte-americana. Muito comumente associado ao charme de speakeasies, mulheres e homens bem-vestidos, e espiões sedutores, o Dry Martini teria caído no gosto dos americanos durante a Era da Proibição e seguido uma ascensão nunca antes vista em outro coquetel, com destaque às Décadas de 30 a 60[9].
Inclusive, uma curiosidade interessantíssima: na Era da Proibição, o gin também foi alvo de dura fiscalização, mas não demorou para que os americanos arranjassem um jeito de burlar a lei. Fazia-se nas banheiras das casas uma mistura de álcool de baixa qualidade, óleo essencial de zimbro e até açúcar, batizada de “Bathtub Gin”. Diante do consumo estranhamente elevado de óleo de zimbro e açúcar, estes itens logo foram incluídos na lista de contrabando da época, sendo considerada suspeita a pessoa que comprasse elevadas quantidades desses insumos de vendedores não autorizados. Isso aparece, por exemplo, em uma matéria de 09/04/1924, do jornal The Baltimore Sun[10]:
Durante todo o período entre guerras, é possível notar a “evolução” na forma de se apreciar o Dry Martini, que se tornava cada vez mais seco e maior.
No documentário chamado “The Martini: Iconic Cocktail” [11] são trazidos diversos depoimentos e tributos ao Dry Martini de. Dentre eles, trazemos a fala de Dale DeGroff sobre as proporções entre gin e vermute em um Dry Martini no curso da História.
DeGroff conta que o peso da Segunda Guerra Mundial fez com que o Dry Martini se tornasse ainda mais seco e maior, na proporção entre gin e vermute seco. E conta a história de Bernard Mountgomery, oficial britânico na Primeira e Segunda Guerras Mundiais, que gostava de seu martini com assustadoras 15 partes de gin para 1 parte de vermute seco.
DeGroff vai um pouco mais longe e cita que, durante a Guerra Fria, com o boom da vodka nos Estados Unidos, inventou-se uma variação de Dry Martini chamada “Silver Bullet”, que era servida da seguinte forma: a pessoa despejava vodka em uma taça e abria uma garrafa de vermute no outro canto do cômodo, apenas para que algumas moléculas de vermute pudessem cair sobre o espírito russo.
Essa secura “desértica” dos Martinis na época entre guerras também é explicada no artigo “There Is Something About A Martini”, escrito por Max Rudin em 1997 [12]. Lá, Rudin conta que a potência alcoólica e secura progressivas do Dry Martini foram impulsionadas não só pelo cenário de guerra, mas também apropriação do Dry Martini como um símbolo tardio da masculinidade dos executivos americanos, o que resultava em um fetichismo pela secura e “potência” daquele coquetel nas mais diversas ocasiões, por exemplo:
NAS ASAS DO DRY MARTINI:
Não foram raras as correlações entre Dry Martini e a bravura dos soldados americanos, as quais criavam ou reforçavam a ideia de que aquele coquetel era “coisa de homem”, logo, deveria ser seco e forte como um coice de mula. Em uma matéria jornalística do The Kansas City Times, datada de 18/05/1943, era exaltado um avião de guerra americano chamado de Dry Martini, que tinha retornado com sua tripulação são e salvo depois de sobrevoar algumas cidades europeias [13].
O MARTINI DE OPPENHEIMER:
Sendo um homem de seu tempo e imerso na cultura masculina da classe executiva americana, Oppenheimer não fugiria à regra de ser um apreciador de Dry martinis intensamente secos. Diz a lenda que, em uma noite de festa na casa do cientista em Los Alamos, Oppenheimer teria servido sua própria versão de martini, que veio a ser batizada de Oppenheimer’s Martini [14].
Os ingredientes: 120ml de gin e e cerca de 0,2ml de vermute seco. No preparo: há alguma discussão quanto método de preparo se é batido ou mexido, de forma que não conseguimos ter alguma certeza aqui. De todo modo, basta coar a mistura para uma taça resfriada, mas com um diferencial: a taça deverá estar bordeada com uma fina camada de uma solução de partes iguais de mel e limão-tahiti.
Esse é mais outro exemplo do apego a martinis extremamente secos e, ‘cá entre nós, muito provavelmente intragáveis. E falamos isso com todo respeito aos puristas e apreciadores de gin gelado #paz.
A ERA DOS ALMOÇOS EXECUTIVOS INTERMINÁVEIS:
Havia uma questão que acometia os almoços dos executivos (isso mesmo o que você leu, almoços).
Em uma matéria 08/07/1960 do jornal The Decatur Daily, intitulada “Tempestade em uma taça martini”, conta-se sobre um suposta crise no meio executivo, em que os almoços tinham se tornados longos demais e estaria afetando a produtividade das empresas. A matéria coloca como culpados por essa situação os vários Dry Martinis consumidos durante as refeições. O engraçado é que o jornalista que fez a matéria diz, com tom de preocupação, que “um dia, isso poderá ficar conhecido como a Era dos Almoços Longos” [15].
LOUCURA POUCA É BOBAGEM – UM MARTINI NUCLEAR:
Se você achou o Oppenheimer’s Martini demais para o seu “frágil” paladar, você não conseguirá nem ler sobre o coquetel que vem a seguir.
Na corrida por Dry Martinis cada vez mais secos e alcoólicos, os americanos aliaram a coquetelaria à ciência nuclear – talvez com pitadas de fantasia. Em uma edição do Boston Sunday Globe, de 25 /12/1966, Paul A. Pollock Lowell escreveu uma pequena carta ao Editor do jornal, intitulada “The Perfect, Perfect Martini” [16].
Lowell dizia que o jornal havia feito um ensaio sobre martinis, mas que este não tinha abordado todos os efeitos sociais, psicológicos, emocionais e econômicos de um martini na civilização ocidental. Com este gancho, Lowell contra a história de que “o verdadeiro auge” na cultura do Dry Martini teria ocorrido em meados de 1944, graças a um cientista nuclear, cujo nome Lowell disse que manteria no anonimato.
A esse cientista, Lowell credita a invenção do Fissionable Martini.
O coquetel teria surgido no deserto de White Sands, no Novo México, onde também se realizou o primeiro teste nuclear americano. O engraçado que nós conhecemos um cientista nuclear que era fã de martinis e também estava em White Sands: Oppenheimer, lembra? Mas pode ser que tenha sido outro cientista…nunca saberemos.
Então Lowell diz o seguinte:
“Em um raro momento de descontração em uma festinha, os pensamentos de nosso benfeitor [ “o cientista anônimo”] voltaram a atenção para o martini que estava em sua mão. Não era lá um martini muito bom e ele imaginou silenciosa e abstratamente, métodos de melhorar o drink. Então, ouviu sem querer de um colega “E= mc² “, e a fórmula para o martini perfeito arrebatou sua mente.
Na mesma semana, no meio do burburinho para a preparação de uma explosão atômica, esse intrépido amante de Martini, na calada da noite, e colocando-se em grande risco, escalou a torre que segurava aquela horrível engrenagem da destruição. Agindo com infinitos cuidado e rapidez, ele escondeu uma garrafa do seu melhor vermute seco dentro do mecanismo.
Na manhã, quando a contagem regressiva tinha terminado, quando o mundo entrou na Era Atômica, também entrou na era do Dry Martini perfeito. Desse dia em diante, sempre que a ocasião chamar por martinis, nosso pequeno grupo enche a taça com o melhor gin, depois seguramos a taça para fora da janela”.
Cá pra nós: a história de Lowell chega a ser cômica de tão absurda. Imagine que, para um martini perfeito bastaria colocar uma taça com gim do lado de fora da janela e deixar o resto do serviço por conta dos “átomos de vermute”? O fato é que, lenda ou não, essa história é outro belíssimo exemplo de como a sociedade americana estava envolta na loucura, e na secura, de tempos atômicos e de Dry Martinis “desérticos”.
UM ÚLTIMO ‘CAUSO’: A PARANOIA DO BUGGED MARTINI
Mesmo durante a Segunda Guerra Mundial, diversos países se preocuparam com sabotagens e vazamento de informações governamentais por conta de espiões nazistas e comunistas. Esse cenário se agravou profundamente na época da Guerra Fria, em que diversos países institucionalizaram serviços secretos de contraespionagem, que vigiavam tudo e todos, incluindo produções artísticas, telefonemas e tudo o mais que soasse ‘de longe’ estranho.
O medo dos commies era tamanho que muitos membros do Governo Americano, por exemplo, promoveram ou incentivaram verdadeiras “caça às bruxas” contra os próprios cidadãos. Essa situação gerou um temor e desconfiança generalizados, e a paranoia da vigilância caiu no gosto popular, especialmente, quando se tratava de denúncias anônimas e aparelhos de espionagem.
Para essa nossa conversa, o ápice da espionagem ocorreu em 1965, quando Harold ‘Hal’ Lipset – conhecido detetive americano- levou ao subcomitê do Senado o protótipo de “azeitona para martinis”, que continha uma pequenina escuta alojada em seu interior [17].
‘Hal’ Lipset dizia que o protótipo servia apenas para demonstrar o quão longe poderia ir a invenção de dispositivos de vigilância, e que a azeitona nunca teria sido posta em uso. E foi a partir da tal azeitona que surgiu a lenda do Bugged Martini – assunto de matérias jornalísticas, como essa da edição de 01/03/1966 do The Boston Globe [18]:
O Bugged Martini também apareceu em produções audiovisuais como a comédia “The Last of Secret Agents”, anunciada do The Central New Jersey Home News, de Los Angeles, de 26/06/1966 [19]. Na matéria o aparelho de espionagem é satirizado, estando junto de outras bugigangas paranoicas como guarda-chuvas metralhadoras e capas de chuva invisíveis.
O Bugged Martini também apareceu em jornais de outros lugares do mundo, como a matéria londrina de 1965 no jornal The Observer, sobre espiões usarem escutas inusitadas. Na matéria, o Bugged Martini era apelidado de “O Terceiro Olho do Espião” [20].
Tendo sido apenas um protótipo ou não essa história é outra amostra de como a coquetelaria, especialmente o Dry Martini, acompanhou o clima social, político e ideológico da Era Nuclear e da Guerra Fria.
MORAL DA HISTÓRIA
Em certa harmonia com História de algumas sociedades, a coquetelaria não deixa de fazer suas interações, interferindo e sofrendo interferências do tempo em que se vive.
Entre tragos cada vez mais intensos e secos, a forma de se apreciar um simples (e não tão simples assim) Dry Martini revela a corrida americana por poder científico, bélico e político, azeitada por doses elevadíssimas de álcool e paranoia.
Agora, se me dão licença, vou fazer 50/50 Martini, pois o equilíbrio é a chave.
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